Olhava pela janela observando a paisagem interiorana, causando um sentimento de melancolia. O vagão era aquele de viagem longa, com bancos confortáveis, tudo era limpo e organizado. A cada 15 minutos uma pessoa passava para atender os passageiros.
-Por favor, uma água. Gritou um Sr gordo, Carlos Damasceno (Sr. Carlão), tipo sossegado que gostava de freqüentar a sombra das árvores do parque de sua cidade no final do dia. Lia essas revistas sensacionalistas. Suas risadas espalhavam-se pelo vagão assustando os distraídos. Josué sentava ao seu lado, fazia caretas de vergonha, era sobrinho do Sr Carlão, aquele que a pouco falei. Uma espécie de garoto que cultuava malvadezas, 14 anos de idade, seu tipo era franzino com olhos arregalados cheios de sardas no rosto e quando andava gingava como se fosse um João bobo. Estava irritado com o jeito do tio. Um Sr. muito idoso levantou para ir ao banheiro, Josué de imediato colocou a mala do tio no corredor e o Sr. idoso sem perceber tropeçou, esborrachando-se no chão. Seu nome era de uma estranheza, chamava-se Sr. Mastrantoniberto (Sr.Berto) bateu com o nariz no chão ficando todo lambuzado de sangue e o garoto sem preocupação nenhuma ria sem parar e suas sardas pareciam bolinhas a pular em seu rosto. Sr. Carlão deu uma olhada para o individuo espalhado como um tapete e começou a rir dando tapas nas costas do sobrinho. À frente das duas figuras oníricas encontrava-se uma bela dama, Sta. Maristela, usava um vestido azul turquesa, sandálias de dedo, possuía cabelos longos de uma formosura extraordinária, sua boca desenhava um volume de saciar o desejo incontrolável dos homens, a pele branca como a neve e o seu perfume começaram a enfeitiçar o Sr. Carlão, que ao contrario, possuía um cheiro horrível. A moça ficou indignada com atitude de Josué, Sr. Carlão, de imediato para chamar atenção da bela moça, chamou o segurança e pediu para colocar seu sobrinho de castigo. O segurança possuía uns dois metros de altura, seus braços eram duros como uma bigorna. Josué nem pensou em resistir, foi levado como uma folha de papel para uma espécie de quartinho, e lá ficou trancado. Quando acendeu a luz percebeu que existia naquele espaço apenas um armário, vendo que não estava trancado abriu a porta, encontrou apenas livros. Josué odiava ler, mas estava preso, não tinha nada o que fazer, pegou um livro, por ironia ou coincidência justamente estava em suas mãos, o livro “Recordações da Casa dos Mortos” de Dostoievski. Começou a ler, dava pulos toda vez que uma nova surpresa aparecia no romance. Sua fisionomia estava diferente, seus olhos não estavam estalados de desejos de fazer malvadezas com as pessoas, a cada capitulo que lia olhava para o teto como se estivesse refletindo o que acabará de ler. Numa certa altura começou a ter sonolência e adormeceu. Josué começou a sonhar...
Ano de 1968, era um dia chuvoso estávamos todos reunidos para organizarmos mais uma ofensiva contra o governo, as armas e munições estavam distribuídas e o plano estava traçado. Cada um sabia o que fazer e a atenção tinham de ser redobrada. Fora daquele lugar devia nos portar com naturalidade sem que ninguém suspeitasse de nosso grupo até nossas famílias e amigos. Tudo combinado, cada um do grupo saiu daquele lugar indo de encontro a uma vida normal para no dia seguinte retornar a uma nova reunião para definição final do plano e assim ser aplicado. Josué foi o primeiro a sair, era um rapaz que tinha um vício, a leitura, gostava tanto dos clássicos como dos modernos, seu físico era miúdo, mas era uma pessoa de um humor espontâneo e uma inteligência que ilustrava com rapidez seu pensamento e idéias. Estava a caminho de casa, morava próximo à Igreja Santa Ifigênia que ficava de frente a um viaduto de pedestre com o mesmo nome. Josué olhando de longe o viaduto. Para ele era um dos lugares que mais apreciava no centro da cidade por possuir uma visão maravilhosa do vale do Anhagabau. Passou pela sua casa, acenou para sua irmã e seguiu caminho. Chegando no meio do viaduto parou para apreciar o movimento e a paisagem que enfeitava o vale. Num gesto corriqueiro colocou sua mão no bolso de seu casaco, um documento fornecido pelos companheiros, era muito arriscado andar pela cidade com aquele papel. Josué virou para direção de sua casa com intenção de ir para lá, quando dois homens se aproximaram, vestiam roupas idênticas como se fossem gêmeos. Josué começou a transpirar, um deles perguntou:
-O Sr é Josué Damasceno?
-Sim sou eu, o que desejam?
-Apenas queremos fazer algumas perguntas.
-Pois não, perguntem? Josué estava tremendo, não conseguia conter o nervosismo.
-O Sr. estuda na USP?
-Sim, estudo.
-O Sr. não foi à aula hoje, onde estava?
-Estava na casa de alguns amigos, como vocês sabem que eu não estava na aula?
-Nós fomos procurá-lo e você não estava.
Neste mesmo instante do outro lado do viaduto passava um dos seus companheiros, o rapaz correndo como se estivesse devendo algo, Josué por uma distraída inocência disse:
-Avise a todos que me pegaram, corra, corra.
O capanga que possuía a cara de valentão correu atrás daquele que fugiu, enquanto o outro, espantado disse:
-Avise a quem e sobre o que?
Josué ainda não percebera que cometeu um erro, e continuou a falar.
-Ora os Senhores não descobriram tudo?
-Sobre o que meu rapaz? Estávamos na realidade atrás de pistas de um criminoso.
Josué espantado tremendo mais ainda perguntou:
-Criminoso, que criminoso?
-Um visinho seu matou um advogado e fugiu, como ele foi seu amigo de infância, queríamos apenas algumas informações sobre o acusado.
Chega então o outro carrasco puxando pelo braço o amigo de Josué com o rosto todo machucado, dizendo:
-Ele confessou tudo, hoje estamos com sorte viemos atrás de um peixinho encontramos tubarões.
Josué totalmente nervoso perguntou:
-Confessou o que?
O brutamonte após dar um chute no rapaz que tentou fugir disse:
-Que vocês são da guerrilha e estão presos.
Levou então Josué e o outro rapaz para um lugar próximo a estação da luz.
Chegaram lá desacordados, pois tomaram uma coronhada na cabeça. Jogaram Josué numa sela imunda e seu amigo para um outro lugar que provavelmente igual ou pior. A sela possuía paredes com manchas de mofo, baratas percorriam de um canto para o outro e pernilongos com seus zunidos irritantes pausavam, na pele de Josué tirando lhe sangue. Entrou um ser muito forte possuidor de uma voz gritante e um bafo de sentir a distância, de imediato deu um soco no rosto de Josué que caiu no chão arrebentando um dos cotovelos. O brutamonte não satisfeito pegou dois fios introduziu na tomada e a outra ponta nos pés de Josué que gritou de tanta dor provocada pelos choques. Aquele que o torturava, urinou num copo e forçou Josué a tomar, se não tomasse cortaria seus dedos da mão direita. Para não perder os dedos tomou de um só gole em seguida vomitou. O brutamonte dando risada falou:
-Não vamos ter o trabalho de trazer sua comida, isso que está no chão serve para pessoas como você. Deu um chute em Josué e disse:
-Boa noite bonequinha.
Josué não parava de chorar, havia passado mais de 28 horas sem alimentar e sabia que não ia receber comida, sendo assim, pegou umas baratas e comeu juntamente com seu vomito. Passaram uns dez minutos, colocaram pela portinha da cela um copo com água, quando Josué foi pegar, alguém com uma vara derrubaram o copo, caindo toda água. Algumas risadas ecoaram próximo à porta, enquanto isso, um monte de pernilongos, no corpo nu de Josué sugava seu sangue.
Josué pensou, isso tudo é um sonho, mas seu coração disparou como uma locomotiva e deu um grito:
-Socorro eu sou inocente e vocês saem de cima de mim, deixem meu corpo em paz...
Todos foram socorrê-lo naquele pequeno quartinho, mas era tarde. Sr. Berto tirou de suas mão um livro, aquele que Josué começou a ler, seu tio apavorado como nunca, disse:
-Ele está pálido, branco feito farinha, será que ele morreu, ou pior será que algum mal levou sua alma?
Seu grito foi apavorante, como se alguém estivesse apossando do corpo dele, pobre menino!
-A bela Maristela que já trabalhou como enfermeira, tomou-lhe o pulso, balançou a cabeça para os presentes, encostou seu ouvido junto ao peito de Josué para escutar as batidas de seu coração, balançou novamente a cabeça, e disse:
-Ele já era, morreu.
Todos se sentiram culpados, pediram então para que o maquinista parasse o trem, já que restavam ainda três dias de viagem, tinham de fazer um enterro digno ao jovem e assim foi. Improvisaram um caixão amarrando o jovem Josué para que ele não se soltasse. Escolheram um lugar próximo a uma lagoa, havia um padre no trem que foi convidado a fazer a prece e a dizer as últimas palavras.
-Caros amigos e fiéis é triste uma pessoa tão jovem partir deste mundo, mas bem sabemos, todos escutaram “saiam de mim, deixem meu corpo em paz”; era o mal tomando seu corpo, um enterro digno através de uma aprece, livrará sua alma das forças do mal, se é à vontade de Deus, assim tem que ser.
Enquanto a padre falava de repente o defunto começou a gritar:
-Eles me pegaram, eles me pegaram!
Todos saíram correndo, Sr. Carlão com as pernas bambas de medo disse:
-Era o que eu temia as forças do mal pegou a alma de meu querido sobrinho. Josué continuava a dizer:
-Graças a Deus era um sonho, eles não me pegaram, gente eu estou vivo, me soltem, por favor.
O padre todo assustado disse:
-Isto é obra do demônio, atirem nele.
Maristela apavorada disse convicta:
-Tenho certeza que ele estava morto, minhas experiências como enfermeira prova os fatos, atirem nele o demônio está em seu corpo.
Todos diziam a mesma coisa, atirem no danado para livrar a alma do pobre Josué.
Josué debatia naquela armação que fizeram para ele, tentando falar, que ele dormiu, teve um pesadelo, deu um grito pensando que estava sendo torturado, ficando tão nervoso e apavorado a ponto de perder os sentidos.
O Sr. Berto, aquele que Josué fez cair disse que o morto estava tentado persuadir a todos e que na realidade o grande mal estava utilizando seu corpo para amaldiçoar a todos e que devia ser morto com fogo.
Sr Carlão estava prestes a dar um tiro no sobrinho, quando teve a idéia depois de ouvir o que o Sr. Berto. Pegou um galão de combustível jogou sobre o sobrinho, enquanto isso todos diziam:
-Vamos salvar sua alma Josué.
Josué desesperado, chorando implorava:
-Eu não morri, foi um sonho, não existe demônio algum, por favor, não façam isso. Josué viu que não tinha solução pediu uns instantes para falar.
-Já que vou morrer, quero deixar um alerta aos humanos do futuro, escutem bem o que vou falar, aquilo que aconteceu em meu sonho, pode vir a acontecer, se assim for, morrerei com a maior tristeza que um ser humano possa sentir. “Pensar que um homem possa destruir as idéias, a personalidade, a integridade, a dignidade e a liberdade de um outro que é semelhante a ele, de obrigar a rastejar feito um animal numa cela sem defesa nenhuma é demonstrar o quanto à humanidade é medíocre fortalecendo o seu estado de inexperiência e de maldade, a maldade mais avassaladora que possa existir “a maldade humana”, de destruir em segundos um todo que a natureza demorou milhões de anos para construir e ainda de perder ao poucos o sagrado orgulho de uma chance de viver e reconhecer o quanto ainda somos infantis”. Após estas palavras por uns instantes um silêncio tomou conta do lugar, em seguida todos disseram ao mesmo tempo, queimem, queimem. O padre completou:
-O demônio sempre caçou do ser humano, o mal sabe usar palavras bonitas, a tortura só existe para aqueles que a merecem, para aqueles que não reconhecem a apalavra de Deus, a justiça é concedida por Deus, se o cidadão está na cadeia é porque ele tem algo de mal.
O padre com os olhos vermelhos de tanto gritar foi o primeiro a acender o fogo e em seguida todos em silêncio fizeram o mesmo.
Josué teve tempo de dizer as últimas palavras:
-“Ainda assim, queimado em brasa por aqueles que são iguais a mim tenho a esperança de que um dia olhem para trás e vejam quantos grandes homens e mulheres com suas idéias persistentes acreditando no ser humano construíram um lado digno e verdadeiro da história da humanidade”.
Aquelas palavras nem pareciam do jovem Josué, este fato aconteceu no ano de 1918, numa dessas viagens corriqueira de trem num lugar próximo a grande São Paulo. Hoje sou preso político fui torturado e humilhado, naquela época era um jovem padre de 22 anos, agora estou com 68 anos, não tenho esperança nenhuma de sair daqui, muitos amigos foram mortos outros fugiram, só espero que alguém possa divulgar ao mundo o que escrevo e que os fatos sejam apurados para que as cenas do inferno não se repitam.
Milhares de pessoas desapareceram na época da ditadura, por isso desconhecemos o nome do padre, mas por algum motivo este relato sobreviveu, foi encontrado no meio de um livro, Recordações da Casa dos Mortos de Dostoievski, na biblioteca Municipal do Rio de Janeiro, em fevereiro do ano de 2000.
MAURÍCIO ELOY
16/11/2000
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